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14 de Agosto de 2013

Millôr tradutor

A qualidade da traduçâo shakesperiana de um autor que virou referência na crítica nacional

A tradução foi uma das muitas artes da palavra em que Millôr Fernandes (1923-2012) exercitou seu talento e sua criatividade. Além de jornalista, cronista, dramaturgo, letrista musical, roteirista, romancista, fabulista, aforista, polemista, chargista e humorista, o Millôr encontrava na tradução outra forma de expressar-se e divertir-se.


"Ao traduzir" - como nos disse em entrevista ao primeiro número de Língua, em 2005 -, "é preciso ter todo rigor e nenhum respeito pelo original". Em outras palavras, traduzir bem é obter o melhor resultado possível no idioma de chegada, o resultado mais inteligível e inteligente, encarando o idioma de partida como de fato é: um ponto de partida. Não se deve ter "nenhum respeito" (passe o exagero millordiano) com o original para captar-lhe o espírito.

Autodidata
Tornou-se, por sua própria conta e risco, um "mero intermediário da semântica" (assim Millôr definiu ironicamente o tradutor), sem medo de aprender, no fazer tradutório, ao menos cinco idiomas: espanhol, inglês, francês, alemão e italiano. Apoiado nesse conhecimento, não se furtou a traduzir obras escritas em grego, húngaro ou polonês.

Brincava com seu autodidatismo, dizendo ser tradutor juramentado porque tinha jurado não falar de tradução. Mas, falando mais sério, como autodidata ciente dos riscos que isso comporta, desenvolveu a crítica e a autocrítica: "A desconfiança de tudo que leio (e também que vejo, cheiro ou toco) me permitiu ser um razoável tradutor".

Filosofia de trabalho
O rigor e a autonomia intelectual se refletiam em sua prática de tradutor e de crítico implacável das traduções publicadas no país. Por exemplo, considerava ridículo o uso da palavra "teto" no título em português de uma peça de Tennessee Williams, Cat in a Hot Tin Roof. O certo, afirmava, era Gata em Telhado de Zinco Quente (Millôr traduziu essa peça em 1980).

Encenada no Brasil entre 1998 e 2000 (direção de Moacyr Góes, com Vera Fischer e Ítalo Rossi) sob o título de Gata em Teto de Zinco Quente, ao que parece ninguém, exceto Millôr, levantou a lebre. E explicava ele que "teto" fazia pensar num lustre vagabundo, quando, pelo enredo da peça, aludia-se à imagem de uma gata nervosa, no cio, saltitando como se estivesse num telhado de zinco quente.

Em outra ocasião, em sua coluna em Veja (27/5/2005), reclamava da tradução oficial do título de um filme de Stanley Kubrick, Eyes Wide Shut. Alegava Millôr que De Olhos Bem Fechados, embora aceita por todos, era uma solução equivocada. E oferecia, de graça, uma alternativa - Olhos escancaradamente fechados. Se a intenção de Kubrick era criar um filme paradoxal, em que os personagens veem e não enxergam certas realidades, o título deveria expressar esse paradoxo.

Para Millôr, o tradutor deve possuir e praticar uma filosofia de trabalho, cultivar princípios que lhe deem um norte, que fundamentem decisões e escolhas. No seu caso, traduzir era primeiramente "pôr em português", o que o levou a realizar traduções com ares de adaptação. É nesta categoria "mista" tradução-adaptação que se classificam trabalhos seus como A Celestina (Fernando Rojas), Lisístrata, a Greve do Sexo (Aristófanes), e As Eruditas e Don Juan, o Convidado de Pedra (Molière).

Atuação
Em se tratando de textos teatrais (traduziu mais de 50), "pôr em português" significava, para Millôr, pensar no palco. Traduzir o texto implicava levar em conta que seria interpretado por atores e ouvido por uma plateia. Um saudável pragmatismo tradutório, adotado por Millôr de modo intencional, sem frescuras, exigia que o texto fluísse como um falar brasileiro, recuperando e recriando aliterações, trocadilhos e outros efeitos linguísticos presentes no original. A expressiva imagem que usava era a de que traduzir não é "empalhar a borboleta", ou seja: a borboleta que voa em inglês, alemão ou norueguês, deve voar em português com igual vivacidade.

Millôr Fernandes traduzia, estudando. Aliás, defendia sempre essa ideia: traduzir se aprende... traduzindo, assumindo-se tarefas difíceis e lançando-se honestamente à luta. Para tanto, consultava inúmeras versões (brasileiras e estrangeiras) do texto que iria transubstanciar. Entendendo corretamente o original, e sua poética, reescrevia aquele texto em português do modo como (em tese) Shakespeare, Dario Fo, Luigi Pirandello, Rainer Fassbinder ou Eurípedes o produziriam, caso fossem brasileiros, sem abandonarem seu estilo e sem saírem do seu próprio contexto existencial.

Outros autores
Por outro lado, tinha a convicção de que, para realizar uma tradução boa, não precisava dominar plenamente o idioma estrangeiro nem conhecer com profundidade absoluta o ambiente e as circunstâncias em que o autor havia escrito. O que lhe parecia mais decisivo, sempre, era conhecer bem o próprio idioma, e elaborar em português uma versão pessoal e interpretativa do texto estrangeiro. Neste sentido, negava a existência de "expressões intraduzíveis". Se o autor escreveu, o tradutor (que, na visão de Millôr, deve ser escritor para desempenhar esta tarefa) também pode escrever e... inventar.

Millôr, sem fazer barulho, tornou-se o mais prolífico tradutor de peças teatrais no Brasil, fato não tão evidente porque a maior parte dessas traduções, após cumprir sua função no palco, permaneceu inédita. Além dos autores já mencionados, traduziu, a partir da década de 1950, Harold Pinter, Brecht, Sófocles, Racine, Arthur Miller, Beckett, Frederick Knott, Mart Crowley e mais uma lista de outros tantos nomes da dramaturgia clássica, moderna e contemporânea que duplicaria o tamanho deste parágrafo.

Coragem
Vale a pena frisar uma vez mais a coragem criativa de traduzir textos de idiomas que não dominava, mas que se dispunha a estudar. Embora desconhecesse o idioma russo, por exemplo, verteu O jardim de cerejeiras de Anton Tchékov. Poderia parecer presunção, mas era justamente o contrário. Porque estava profissionalmente empenhado em realizar essa tradução, despojou-se do medo de aprender (e de errar), recorrendo a dez versões diferentes daquela peça, cercando-se de dicionários e livros de referência, e pedindo ajuda a tchekhólogos como o diretor teatral Jorge Takla.

Mas foi vertendo quatro importantes peças de Shakespeare que Millôr se revelou um consumado tradutor! Como escreveu o espanhol José Manuel de Sevilla, "traduzir Shakespeare é traduzir teatro". Parafraseando: traduzir Shakespeare é, de fato, traduzir! As quatro peças foram Hamlet, A Megera Domada, O Rei Lear e As Alegres Matronas de Windsor, editadas pela L&PM.

Para ilustrar um pouco do estilo tradutório de Millôr, apresento a seguir trechos de Hamlet vertidos por ele, em contraste com o trabalho de outros tradutores brasileiros.

Saiba mais: Revista Língua